terça-feira, 15 de novembro de 2011

Entrevista com Délcio José Bernardo - Escola

** Foto: Paulo Carrano

Délcio José Bernardo é natural de Mambucaba, 4º distrito de Angra dos Reis e servidor público do município. Formado em Comunicação Social pela Universidade de Barra Mansa; Pós-graduado em Raça, Etnia e Educação no Brasil pelo PENESB, UFF.

Esta entrevista foi realizada na UERJ - Maracanã, RJ. No dia 23 de setembro de 2011.

Dividimos a entrevista em três blocos: Família; Escola, Jongo e Movimento Negro.

*Todos esses blocos foram permeados pelo tema Racismo.


Elizabeth de Paula; Ester Pacheco; Gláucia L. D. Bispo; João Bastos; Sandra Costa; Vanessa Coutinho e Vilena Souza.


Trabalho do Grupo Memória/História (turma da noite)
Disciplina Relações Etnicorraciais na Escola
2011/2
Prof.: Paulo Carrano
Curso de Pedagogia -Niterói/UFF



Tema: Escola


Entrevistadora: “A necessidade de ver nosso rosto nos espaços onde não estávamos habituados. O que te fez perceber isso? Teve alguma experiência marcante, que te atentou a esse fato?”
Délcio: “Tem a escola. A escola é uma experiência marcante para gente, né?... eu não generalizando. A minha fala é a fala do grupo que eu vivo. Mesmo a gente convivendo com o racismo na própria família da gente. A sociedade reproduz o racismo, não dá para você pensar que a sua família não reproduzirá. Lógico, tem famílias que não. A minha vivencia não. O racismo era reproduzido na minha família. Mesmo assim, ainda existe uma relação de igual, o comportamento era igual nessa família, entre os irmãos... Somos iguais. Quando você vai para a escola você encara o diferente. E a escola para nós era uma promessa de melhoria de vida. Minha mãe dizia muito isso: “vai para a escola, pois na escola você vai ser alguém”. Meus pais eram analfabetos. Não dominavam nem a leitura nem a escrita. Então era isso, depositar nos filhos uma expectativa de ter uma vida diferente. E essa vida diferente, é diferente em relação à cidade. Uma coisa é a vida da gente na roça. É onde você produz seu alimento, você é dono da sua mão-de-obra. Por mais que seja uma vida sofredora, porque a gente sabe como é tratado nesse país, mas ainda assim você tem como produzir. Na cidade é diferente. Na cidade, você sustentar uma família de 12 irmãos, pai e mãe, sobreviver, que emprego que tem? Enfim... isso gera uma coisa... é... você fica privado até da sua alimentação. E aí, isso gera nos pais um desespero, e acabam por pensar que a escola é o caminho. Ai quando você chega na escola, você começa a ver a configuração ou talvez a sistematização da questão racial. É a professora que ignora você em sala de aula. Se você falta ou se não falta... a relação da professora com alunos e alunas brancas em relação aos alunos negros. Isso é um choque. Não que eu entendesse que aquele momento ali era uma prática racista. Eu não tinha entendimento, mas você percebe ali a forma como as pessoas te tratam. Você sabe que é diferente, só não sabe o porquê. Essa experiência da escola é uma experiência muito marcante. Hoje, por que a maioria das meninas e meninos negros saem da escola? Não é só porque eles não têm grana. Hoje a gente vai percebendo isso. Em um espaço que você vai para “ser alguém”, você é tratado como ninguém. É uma questão de superação. Hoje quando eu vejo uma mulher ou um homem negro que se formou... Isso é um exemplo de superação.
Quando você ta na rua com o colega, você também entende aquele espaço como de brincadeira... Mas quando você está na escola, ali é o espaço para se transformar. A insistência da minha mãe de “ser alguém” que permitiu a permanência na escola.
Mas a escola não é uma experiência somente ruim. Hoje eu lembro que dentro deste real de coisas, uma das merendeiras da escola, era uma figura super acolhedora. Parecia que ela entendia que a gente tinha saído de casa sem tomar café. Ela levava a gente para o refeitório e dava um café reforçado. A escola foi uma experiência ruim, mas não só ruim.”

Entrevistadora: “Esse tratamento se dava de forma explícita ou implícita?”


Délcio: “O racismo tem várias dinâmicas, o professor Carlos Reis fala isso. Mesmo quando as pessoas estavam meio que te elogiando, elas elogiam a partir de um ato racista. De uma reprodução, de uma forma racista porque tinha hora que isso era muito claro, isso era muito aberto mesmo. E a gente pensava: ‘ah é porque a gente é pobre, mora no morro, porque vem com um sapato sujo de lama’. Deveria ser isso, mas nunca passou pela nossa cabeça a questão racial. A professora na hora de ir embora beijava todo mundo, e você passa despercebido. Os colegas chamavam a gente de macaco, cabelo de bombril e mais uma centena de coisas que a gente conhece. Eu pensava: ‘ah é porque não tenho dinheiro’, mas te chamar de macaco não é porque você não tem dinheiro. A gente percebia que alguns professores não tinham interferência, pelo contrário, alguns até riam. E essa também é uma dinâmica que o racismo faz. Às vezes a pessoa não concorda, mas não sabe como atuar. Então, às vezes, é mais fácil até rir também.”

Entrevistadora: “Ou às vezes ela pensa assim também.”

Délcio: “Ou às vezes ela pensa assim também. Porque ainda hoje a gente percebe. A gente avançou pra caramba, mas essas brincadeiras ainda estão presentes na vida da gente. Existe essa conivência. Mesmo você não percebendo... E se alguém chama a sua atenção, você discorda. Você ‘não, imagina. ser racista aqui no Brasil?’ Essa manifestação se dá em vários níveis. No nível de ser aberto. Mesmo sendo aberto, a gente não saber naquele momento que era. E o racismo de alguma forma velada mesmo. De ter vergonha na sala de aula de perguntar as coisas. Se entendeu, bem. Se não, deixa pra lá. E aí você vai embora assim. E o olhar que hoje eu identifico é a expectativa. Que expectativa as pessoas tinham da gente, quanto a alunos e alunas negros? É muito difícil você ver negros que ascenderam profissionalmente. Você vê nas ruas, atrás do balcão, enfim. Então, a expectativa do professor talvez seja: ‘ah, ele está estudando mas vai terminar como servente de pedreiro, carregador de caixa’, meio que tendo uma linha definida. Então, não dá pra você criar muita expectativa com esse grupo. Então, você tem que, dentro da escola, tentar... uma criança de seis, sete anos não vai pensar isso”

Entrevistadora: “O papel da família é importante. Sua mãe te incentivou. Porque se não fosse isso talvez você estivesse hoje vendendo bala.”

Délcio: “Eu fui pra escola com nove anos de idade e do grupo que entrou comigo, a maioria morreu devido à violência. Nenhum conseguiu se formar. Só eu. Eu tenho contato com esses que ficaram vivos (risos).”

Entrevistadora: “É a prova que o incentivo da família faz diferença.”


Délcio: “Faz (demonstra incerteza). Eu estou entendendo o que vocês estão falando, mas eu tenho medo de atrelarem o sucesso ao esforço. E que aqueles que não conseguiram se formar foi porque não se esforçaram. Minha família é formada por doze irmãos e só eu consegui me formar. Meus irmãos, primos, devem ser umas 60 pessoas. Dessas 60, a maioria chegou só até a 4ª série. Meu irmão, por exemplo, não o mais velho, mas mais velho que eu, deixou de estudar pra me dar uma força pra eu estudar. Então não foi porque ele não se esforçou. Depende de como as vidas das pessoas estão estruturadas. Então, às vezes, era mais fácil investir... Botar o pouco que tinha, e esse pouco era pouco mesmo (risos)... E aí quando a gente entra na escola a expectativa que a gente tem, que nossos pais colocam na gente, essa de que a escola vai nos fazer alguém, bota na nossa mente que a gente não é ninguém. Às vezes eu matava aula para pescar porque era muito mais bacana de se fazer. Era uma água clarinha com peixinhos e a mãe puxava a orelha.
Quando eu falo dessa merendeira e uma das diretoras que passaram por lá, a gente pensava ‘ah, tem alguém que vai dar uma segurada lá. ’ Na escola, se um aluno branco caísse no chão, era uma coisa. Quando era a gente que caía, ‘ah, tá acostumado, já’ ”

Entrevistadora: “O problema da história é esse. Não deveria ter esse tratamento diferenciado.”


Délcio: “Mas assim, a dinâmica é essa... Eu trabalho na Secretaria de Educação e o meu esforço em estar na educação... Eu era muito ligado com o movimento cultura. Já cheguei a ser diretor de cultura em Angra e percebi isso que a escola é um espaço muito bacana de se atuar. E essas experiências nos ajudam a refletir com os professores porque às vezes você vai repetir as histórias. Porque eu não acredito que essas pessoas da escola que estudei fossem maldosas ou fizessem isso para maltratar a gente, mas ela faz como uma reprodução. Então, é legal fazer esse debate, não com rancor, mas fazer esse debate porque estamos construindo vidas, crianças vão passar por você. E não ser só um aluno esforçado, mas ser um aluno que tenha esse apoio. Eu acredito que o ser humano é por si só um ser inteligente. E essa inteligência pode ser direcionada para vários caminhos... A riqueza da escola pública é fantástica e às vezes a gente tem pessoas que reproduzem esses racismos. A gente estava observando que em Angra, na rede municipal, são 24.800. E o censo feito com 12.400 alunos aponta que 50% desses 12.400 se declaram negro e 50% se declara branco. E quando chega no 5º ano o número de negros cai muito. E quando chega no 9º ano, tem 30% de negros e 70% de brancos. Então, as crianças estão saindo da escola. ‘Ah, mas isso é questão social mesmo’ mas a criança vai trabalhar? ‘é, a criança vai trabalhar’ mas é só crianças negras que trabalham? ‘ah, mas nessa fase do 9º ano os meninos começam a namorar’ mas só as meninas e os meninos negros? Aí tem essa defesa de que é uma questão social. Mas eu discuto que não é uma questão só social e coloco um pouco dessa minha experiência como aluno negro, esses absurdos, a coisa do cabelo, a valorização. E aí você vê o seu rosto, mas como positivo. E não somente como escravo, acorrentado, como um cara sujo, como um cara da rua, mas você vê o seu rosto dentro do contexto da família convencional, um rosto alegre. Não dá pra você ver seu rosto só em propaganda de lixão, de miséria. Isso cria um funil na expectativa da gente e na expectativa de quem tá ensinando, entre aspas, a gente. É simples. È só colocar a foto de uma criança negra feliz. A gente também tem felicidade. Mas não feliz porque ganhou um passe de ônibus, não feliz porque ganhou um bolsa-família, não porque ganhou um uniforme, mas feliz porque ele é bem na escola, porque é inteligente. E aí, vai se adequando à nossa imagem de felicidade relacionada às políticas de assistencialismo. Tipo assim, alguns vão sozinhos, outros precisam de ajuda, os que vão sozinhos são os meninos e os meninas brancas e quem precisa de ajuda são os negros.Você vê que é uma repetição de fato. Lei áurea, princesa Isabel . Então você vai ter sempre alguém indo segurando na sua mão, porque senão você não vai. Essa imagem não é verdadeira é uma reprodução de fatos e vai convencendo de que é verdadeiro.
E como uma criança de 6 ou 7 anos rompe com essa lógica? Normalmente você ouve as pessoas dizerem: ‘Eu comecei a ter entendimento de ser negro com 17 anos quando fui para o movimento negro’, o que é o meu caso. E no grupo do movimento negro que eu participo em Angra, por exemplo, a maioria das pessoas que se encaixava no grupo que tinha uma época era muito grande um grupo de quase trinta pessoas as falas eram as mesmas que estou falando pra você aqui, e pessoas de diferentes estados, gente de Minas... A história de abandono pela família era muito grande tinha 10 pessoas que a família abandonou que passou por FEBÉM. Essas histórias vão permeando a vida da gente imagine passar pela FEBEM. Como se recupera? A gente conhece a estrutura desses espaços. As histórias são histórias de superação, vai se superando, superando... Agora tentar entender como se supera acho que vai muito do momento, das famílias, a questão de amigos, você acaba se envolvendo com pessoas que te ajudam a fortalecer é uma construção mesmo. São vários diálogos que você vai fazendo ao longo da sua vida pra você de fato chegar no momento de conseguir entender toda essa dinâmica que o racismo coloca pra gente.”

Entrevistadora: “No texto você coloca a questão do dia 13 de maio, seu rosto era mais percebido, não só você também os outros eram evidenciados por conta da abolição. Eu queria te perguntar: existia alguma atividade específica naquele dia como existe o dia do Folclore que você cita no texto?”

Délcio: “Existia. Naquela época a professora falava da princesa Isabel, mandava fazer pesquisa sobre o dia 13 de maio, aí vinham aquelas sacanagens: ‘vai ser meu escravo’!
Há um tempo eu estava lendo, pesquisando nos materiais de Angra que tinha um período que eu não me lembro agora que a prefeitura de Angra fazia no dia 13 de maio uma tal de Festa da raça, eu não consegui achar muitos detalhes dessa festa, mas era uma festa que tinha músicas. O pessoal do jongo, que naquela época era minha família, fazia jongo. Os trabalhadores da resistência faziam atividade que era o cabo de guerra que era a maioria dos trabalhadores dos cabos arrumados hoje que na época a grande maioria eram homens negros que carregavam sacas de café, carregavam aquele ferro grosso e pesado, eram homens super fortes. Tinham três senhores que eu morei perto da casa deles que o povo contava que ficavam os três de um lado e juntava todos os outros homens do outro e os três conseguiam vencer. Eram homens fortes: seu Fagundes, seu Américo, então essas figuras assim. E essa Festa da Raça era um pouco isso e era a prefeitura que promovia. Eu não achei maiores detalhes dela, até vou pesquisar mais. Mas isso no 13 de maio e na escola era isso, fazer trabalho, fazer pesquisa, ir para a biblioteca pesquisar sobre o 13 de maio aquelas tinham aquelas coisas de fotos. Sempre aquela história o negro lutou, lutou e no treze de maio a princesa Isabel e libertou os escravos, a história termina aí, aí acaba tudo. De 13 para 14 todo mundo vira cidadão. Embora o 13 de maio tenha a sua importância, pelo fato legal, pela luta que os escravizados tiveram para que chegasse o 13 de maio que não é uma coisa gratuita mas é construído a base de muita luta. Mas não era essa a visão desses 13 de maio, a visão era de a gente ter sido libertado pela princesa Isabel no dia 13 de maio. Então, devemos isso eternamente à princesa?”

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